sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Relato de uma alagoana negra em visita a Serra da Barriga

Maceió, 21 de novembro de 2011

      Em visita de férias à minha terra natal durante o período que compreende o dia 20 de novembro, resolvi que não havia melhor forma de passar o dia da consciência negra que conhecendo a Serra da Barriga, lugar de natureza paradisíaca, ladeiras íngremes e um sol quente sem precedentes, que foi palco da maior, mais viva e poética resistência negra nesse país: O Quilombo dos Palmares.
                Apesar de ter nascido e me criado na terra das alagoas, nunca havia visitado a Serra. Na verdade, antes nunca tinha me passado pela cabeça ir, pois o incentivo das escolas, governos e, portanto, da sociedade a esse respeito é praticamente nulo. Aprendemos a história do Quilombo dos Palmares – situado a menos de 75 km da capital Maceió – com a mesma indiferença e distância com que tratamos o bandeirantismo paulista, a noite das garrafadas carioca ou os farroupilhas sulistas.
                Porém mesmo sabendo da falta de incentivo a cultura e história em nosso país, mais especificamente em nosso belíssimo estado, não pude evitar certas esperanças que, infelizmente, se mostraram bem vãs.
                Esperava eu entrar em contato com a história viva de meus irmãos quilombolas, conhecer como viviam, onde moravam, como dormiam, como moíam seus grãos, colhiam seu alimento, se banhavam, se relacionavam amorosamente, lutavam e resistiam.
                Esperava eu encontrar diversos movimentos sociais e organizações políticas, com suas bandeiras e faixas de júbilo - pela importância da memória que o dia traz, o dia da morte de Zumbi - e denúncia - pela situação em que os negros ainda vivem hoje em todo país.
                Contava com a presença de diversos guias e professores em excursão com seus alunos, contando e ensinando sobre a história daquele lugar tão rico, tão fértil, tão traiçoeiro para os que tentavam invadir, tão acolhedor para os que nele buscavam a liberdade.
                Estava na expectativa de conhecer mais sobre Zumbi, Ganga Zumba, Dandara, mocambos, orixás, macumbas e búzios.
                Porém, para minha decepção, o que se passava no alto da íngreme serra barriguda não fugia muito de uma grande festa temática ou um “showmício”. Já no pé da serra, nos deparamos com um grande out-door com uma foto de Zumbi ao lado de um político da direita tradicional e coronelista da região. Político este cujos cabos eleitorais distribuíam santinhos a todos e todas que adentravam o espaço que um dia foi o Mocambo do Macaco, antigo centro político do quilombo.
                No palco, montado no meio do que pareceu ser uma praça, algumas curtas apresentações de capoeira, batuques e danças. E mesmo assim pareceu que foi apenas para cumprir o cronograma, pois logo após o término desses grupos, a trilha sonora do dia da consciência negra na serra da Barriga, sede do Quilombo dos Palmares, passou a ser as músicas carnavalescas de micaretas: Ivete Sangalo, Claudia Leite e companhia.
                Em meio a esse crime cultural, os políticos tradicionais do estado passeavam e acenavam para a população como celebridades. Tiravam fotos, fingiam um certo requebrado ao som do berimbau e, pasmem, furavam a fila pra comprar acarajé!
                Na melhor localização da Serra, foi construído um restaurante muito confortável a preços nada populares, onde estavam o Secretário de Cultura do estado, dois ex-prefeitos de Maceió, políticos do município de União dos Palmares, turistas europeus, e a pequena burguesia excêntrica alagoana. Infelizmente todos os pais e mães de santo e jogadores de búzios estavam “aprisionados” nesse restaurante, compartilhando sua cultura única e exclusivamente com os de cabelos loiros e claros olhos que possuíam dinheiro e prestígio.
                Para estes últimos também foi reservada, no que um dia foi o maior símbolo da resistência negra no país, uma área VIP. Área VIP para políticos, ricos e brancos, na Serra da Barriga! Chega a ser ofensivo!
                O mais interessante é que a moça que impediu a minha entrada nesse espaço, não sabia nada sobre a história do prédio que eles escolheram para reservar. De certo o escolheram, pois era o maior e mais arejado, ficava em posição privilegiada, bem no centro da praça.
                O mais triste é que mesmo agora eu também não sei o que foi o prédio, pois em nenhuma das construções do local havia sequer placas explicativas, marcos históricos ou algo que o valha. Exceção apenas para os três observatórios utilizados na defesa do Quilombo, cuja a legenda existia, mas era muito superficial.
                Saí da visita à Serra sabendo o mesmo que sabia antes, ou seja, quase nada. Se nunca tivesse ouvido falar do que foi o Quilombo dos Palmares, sairia da Serra da Barriga achando que fui numa micareta longe e em cima de uma enorme ladeira desconfortável.
                O povo negro que lá estava em massa, genuinamente atrás de suas raízes, ficou preso numa cortina de fumaça de estereótipos distorcidos, lembrancinhas com a cara de Zumbi, e políticos ocupando os melhores espaços – áreas VIP´s – que deviam ser, por direito quase hereditário, da massa que lá estava.  
                É nefasto como os Governos e a Burguesia retiram do proletariado até sua identidade mais intrínseca e clara.  A história do Quilombo é a história do povo negro e pobre que refez, no dia 20 de novembro de 2011, a trilha íngreme e tortuosa da alta Serra da Barriga. É a raiz e berço de todos nós, porém nos é completamente retirado qualquer referência verdadeira do que foi o processo de resistência de Palmares. 
                Zumbi virou estampa de camiseta – assim como um outro eminente revolucionário Latino Americano – broches, marca de Cachaça fabricada nos engenhos que ainda empregam mão-de-obra escrava na região e cabo eleitoral de político coronel da direita tradicional – descendente, senão biológico, mas com certeza histórico e político, de Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista que conseguiu acabar com o Quilombo e finalmente matar Zumbi.  
                Mas não se enganem: a omissão e o descaso dos Governos Federal e de Alagoas com esse tesouro histórico que possuímos na cidade de União dos Palmares não acontecem por mero acaso. Todo esse crime cultural que descrevi a cima é consciente e voluntário. Eles sabem que lembrar ao povo massacrado por anos e anos de coronelismo político e econômico, subemprego, trabalho semi-escravo, péssimas ou nenhuma condição de vida e sobrevivência, do verdadeiro significado do Quilombo dos Palmares, Zumbi, Ganga Zumba, Dandara e tantos outros e outras, é por demais perigoso, pois como sabemos “o exemplo arrasta” e novos Quilombos podem surgir!


Mácia M. Teixeira
PSTU – São Paulo

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